ISSN: 1139-8736
Depósito Legal: B-27863-2001

PARA UMA HISTÓRIA DO PORTUGUÊS DO BRASIL: USO DOS PRONOMES DE TRATAMENTO NOS PERSONAGENS DO TEATRO DE CORDEL PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI

Tânia Regina Eduardo Domingos
Universidade Federal de Rondônia (Brasil)

Introdução

O objetivo deste estudo é apresentar uma gramática dos pronomes de tratamento falados no século XVI, considerando também as normas estabelecidas pelos gramáticos daquele século. Pretende-se, assim, estimular o interesse pela história da língua portuguesa, sobretudo neste momento em que se comemoram os 500 anos do descobrimento e colonização do Brasil.

Tendo em vista a fala dos primeiros colonizadores, este trabalho oferece uma contribuição à história da língua portuguesa no Brasil através do levantamento do uso dos pronomes de tratamento pelos portugueses contemporâneos do descobrimento e colonização do Brasil. É exatamente o português que veio para o Brasil que está caracterizado nas falas dos personagens populares da literatura de cordel do século XVI, único documento falado que temos dos nossos primeiros colonizadores.

Inspirou-nos, esta pesquisa, num estudo executado durante o mestrado1, onde conseguimos detectar em um único auto da escola vicentina modalidades diferentes do uso dos pronomes. Movidos por esta peculiaridade resolvemos estender o estudo à fala de personagens de outros níveis sociais através dos cordéis do teatro popular português.

Por motivos óbvios não se pretendeu investigar obras de ficção nem a poesia da época. Os usos estabelecidos pelos gramáticos do século XVI e o desempenho dos personagens foram nosso ponto de mira. Procuramos assim não repetir simplesmente as regras que outras gramáticas estabeleceram nem usos encontrados somente em textos literários.

O corpus analisado neste estudo pertence aos autos de Gil Vicente e da escola vicentina. Optamos por esses textos, porque o teatro medieval é o único registro que nos resta da verdadeira atuação dos falantes do português quinhentista, inclusive das diversas classes sociais e dos diversos tipos humanos; os autos vicentinos e os que lhe seguiram a escola têm a particularidade de uma representação fiel dos tipos humanos singulares e de observar a realidade da sociedade portuguesa do século XVI.

Com o objetivo de apresentar uma abordagem completa do uso dos pronomes, fizemos uma seleção de treze autos2: Auto de Vicente Anes Joeira (anônimo), Auto de D. Luís e dos Turcos (anônimo), Auto de D. André (anônimo), Auto de D. Fernando (anônimo), Auto de Inês Pereira (Gil Vicente), Quem Tem Farelos?(Gil Vicente), Romagem de Agravados (Gil Vicente), Auto da Alma (Gil Vicente), Breve Sumário da História de Deus (Gil Vicente), Auto de Mofina Mendes (Gil Vicente), Todo Mundo e Ninguém - excerto do Auto da Lusitânia (Gil Vicente), Auto da Feira (Gil Vicente) e Auto dos dois ladrões (de Antonio de Lixboa).

Para detectar as diferentes modalidades de uso dos pronomes, buscamos personagens de vários níveis sociais, porque no teatro vicentino "não perpassam caracteres, mas tipos sociais agindo segundo a lógica da sua condição" 3. Investigamos os usos, portanto, nos diversos tipos humanos, nas personificações alegóricas4 como Roma representando a Santa Sé, nas personificações bíblicas e míticas, nas figuras teológicas como o Diabo, os Anjos e a Alma.

Os gramáticos e as primeiras do século XVI

Um longo caminho foi percorrido desde a gramática Latina durante os séculos da Idade Média até a definitiva consagração da gramática "vulgar". Os gramáticos do Renascimento lançaram as bases das ciências modernas da linguagem.

Na Idade Média a disciplina ligada à retórica era a gramática latina. No Renascimento, a gramática, como ciência de observação da linguagem, deixa de ser necessariamente latina e passa a incidir sobre as realidades das línguas vernáculas.

O pensamento Renascentista leva a uma revisão do conceito gramatical, surge a chamada "questão da língua" e as novas discussões conduzem a uma nova feição diferenciada das línguas modernas em relação ao latim. O termo Gramática deixa de ser Gramática Latina; valoriza-se o ensino gramatical da língua materna.

Fernão de Oliveira e João de Barros, primeiros gramáticos portugueses, mostraram-se particularmente inclinados às inovações, adaptando a terminologia às realidades da língua portuguesa. Estas inovações fundamentalmente dizem respeito à morfologia, à flexão verbal e à fonética.

Quanto aos pronomes, uma das questões da problemática gramatical daquela época, os gramáticos do século XVI souberam dar, de alguma forma, solução para a sua terminologia e classificação. Entretanto, Maria Carvalhão Buescu5 comenta que "nas primeiras gramáticas do Renascimento, o capítulo dedicado aos pronomes constitui um dos mais confusos e arbitrários, em que cada autor assume uma posição diferente e tenta fazer doutrina própria". João de Barros é o único gramático que apresenta um capítulo dedicado aos pronomes, os demais se limitam a pequenas observações sobre o assunto. Todavia, todos estabelecem, cada um a sua maneira, o uso das três pessoas gramaticais.

A gramática de Fernão de Oliveira

Fernão de oliveira nasceu, provavelmente em Aveiro, em 1507. Foi, contudo, na Beira que passou a sua infância. Considerada a primeira gramática, foi publicada em Lisboa em 1536. Segundo as próprias palavras do autor, sua gramática era uma "primeira anotação da língua portuguesa". Adota uma nomenclatura original, inovadora, que não será utilizada pelos gramáticos posteriores. No capítulo XLVI encontramos um breve comentário sobre os pronomes, onde faz referência aos casos latinos.

João de Barros

João de Barros nasceu em Vila Verde, perto da cidade de Viseu, no nordeste de Portugal. Na sua Gramática da língua portuguesa, editada em 1540, em Lisboa, considerada a primeira verdadeira gramática portuguesa, coloca-se entre os defensores da língua, apontando sistematicamente todas as perfeições e belezas que se lhe apresentam. Pela riqueza da sua reflexão sobre a linguagem, João de Barros parece ser o maior dos gramáticos do Renascimento português, participante ativo nas grandes criações do Humanismo Europeu. Diferente do seu antecessor, João de Barros dedica um capítulo aos pronomes, fazendo um estudo mais longo e detalhado em que divide o tema em subtítulos: "do pronome e sés aspectos", "Da espécia", "Da figura", "Do gênero pe[s]ao e número" e "dos casos da primeira declinação". Para Barros, pronome é "ûa parte da óraçam que se põe em lugar do próprio nome, e por isso dissemos que era conjunta a ele per matrimónio e daqui tomou o nome."6

As Regras que ensinam a maneira de escrever e a ortografia da língua portuguesa com um diálogo que se segue em defensão da mesma língua de Pero de Magalhães de Gândavo

Pero de Magalhães de Gândavo, filho de pai flamengo, era natural de Braga, onde nasceu em data incerta. Esteve no Brasil antes de 1569 e, ao voltar, foi funcionário da Torre do Tombo. Foi o primeiro a escrever uma história do Brasil: Tratado da Província do Brasil e História da Terra de Santa Cruz, impresso em 1576. As Regras tiveram sua primeira edição em 1574. É uma obra de caráter pragmático, seu objetivo principal era ensinar a ortografia aos portugueses que não sabiam latim. O "diálogo em louvor da língua portuguesa" assume um discurso "popularizado", e apresenta dois personagens - um português (Petrônio) e um castelhano (Falencio). Há aqui uma discussão sobre a "questão da língua". Gândavo, empenhado em um programa de divulgação cultural, põe em confronto neste diálogo duas línguas, o português e o castelhano. No "diálogo em louvor da língua portuguesa", Petrônio e Falencio empregam o pronome vós como forma de tratamento, este uso detectamos também nos personagens do teatro popular, objeto do presente estudo.

A Origem e ortografia da língua portuguesa de Duarte Nunes de Lião

Duarte Nunes de Lião era natural de Évora, onde nasceu por volta de 1530. Morreu em Lisboa, dois anos depois da publicação da Origem, em 22 de abril de 1608, segundo consta no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. A sua Origem foi publicada entre 1596 e 1600. É uma longa dissertação com minuciosa e ampla investigação das realidades e dos feitos gramaticais e lexicais. Em relação aos pronomes de tratamento não oferece um estudo específico, apenas examina no capítulo XIX a significação de pessoa nas vozes verbais.

Uso dos pronomes nos personagens de cordel português do século XVI

O amor de Gil Vicente pela pátria se manifesta no seu profundo conhecimento da sociedade portuguesa do século XVI. Pinta um quadro verdadeiro daquela sociedade nos seus textos, com a arte dos grandes pintores. Transporta-nos para aquela realidade como se estivéssemos passando pelo túnel do tempo. É autoridade, como diz Fernão de Oliveira, lapida a linguagem como um ourives, porque ela é a sua jóia mais valiosa.

Os resultados obtidos nesta investigação não ferem ao que foi determinado pelos gramáticos daquele século, uma vez que detectamos o uso nas três pessoas pronominais.

O uso dos pronomes pelos personagens aqui estudados está condicionado aos fatores sociais, onde personagens, tipos populares, alegorias personificadas dialogam e empregam os pronomes nas suas relações de superioridade, inferioridade e igualdade social, tendo em conta, ainda, as situações de [+intimidade], insulto, modéstia, ordem e [+afetividade].

O poder que exerce um personagem sobre o outro determina o uso do pronome. Neste contexto, TU e VÓS têm maior extensão semântica, TU aparece como regra geral entre personagens de nível social superior falando com personagem de nível social inferior (relação de superioridade), neste caso, a condição social do ouvinte determina o emprego do pronome, o uso de TU na fala do superior marca o rebaixamento social do ouvinte (inferior). VÓS aparece entre personagem de nível social inferior falando com superior (relação de inferioridade), aqui o emprego do pronome na fala do inferior marca o distanciamento social entre o falante (inferior) e o ouvinte (superior).

Nas relações de igualdade social, emprega-se o pronome VÓS como registro mais formal (é o chamado pronome de polidez), e nas relações de [+intimidade] entre iguais e entre desiguais, opta-se pelo uso de TU como registro mais informal. Nas relações de igualdade, os personagens que usam VÓS têm mais poder na sociedade e o seu uso distancia muito dos rudes hábitos da gente do povo. Assim, VÓS empregam os escudeiros no Auto dos dois Ladrões, os beleguins no mesmo auto, os vilões no Auto de D. Luís e dos Turcos, a comadre, o pai de Madanela e a mãe de Madanela no Auto de Vicente Anes Joeira. TU empregam as regateiras na Romagem de Agravados, os diabos em Todo o Mundo e Ninguém e os Ratinhos no Auto de Vicente Anes Joeira. Nas relações de [+intimidade] entre namorados, emprega-se o pronome TU, e nas relações de [+intimidade] entre casados, usa-se o pronome VÓS como marca de mudança no estado social.

Marcando um registro estritamente familiar, aparece o uso de TU carinhoso nas falas das mães quando dialogam com seus filhos, elas empregam o pronome como marca de [+afetividade]. O uso de VÓS, entretanto, na fala do pai de Madanela (Auto de Vicente Anes Joeira) faz sentir à filha a continuidade da elegância e boa criação, situação mais privilegiada em relação às pessoas mais rudes.

Nas relações de insulto há um rebaixamento de VÓS a TU. Contudo, a ironia do vilão, no Auto de Vicente Anes Joeira, promove TU a VÓS.

O emprego de VÓS aparece em outra situação, quando há registro religioso. Quando os personagens se referem a Deus ou a entes religiosos sempre usam esse tratamento em sinal de respeito. Na verdade, há aqui uma relação de inferioridade, onde o ente religioso é o elemento superior.

O tratamento VÓS aparece também em situação de ordem. Assim o tratamento salta de TU a VÓS nas falas das regateiras (Romagem de Agravados) e dos namorados (Auto de Vicente Anes Joeira) quando necessitam fazer um pedido.

VÓS também é empregado em situação bem especial nas falas das mulheres nobres com os seus pajens. Elas nunca descem da forma de plural quando se dirigem aos criados. Esta característica da fala feminina nobre marca uma relação de modéstia.

Por outro lado, onde as diferenças sociais não estão tão profundamente marcadas como entre nobres e súditos, outros personagens, masculinos e femininos, empregam o tratamento VÓS quando há situação de modéstia. O falante emprega VÓS em sinal de humildade com o propósito de conseguir convencer o ouvinte; passa de superior para a posição de inferior com o objetivo de tentar atrair a atenção de quem ouve.

VÓS é usado também quando há pluralização de ouvintes, e nos chamamentos o uso do pronome é sempre VÓS seguido do nome senhor(-a).

Conclusão

Regras de Uso

De acordo com o que foi exposto, apresentamos a seguir a regra de uso dos pronomes de tratamento falados no século XVI em Portugal e Brasil:

1. 1ª E 3ª PESSOAS GRAMATICAIS

1.1. Regra Geral

As 1ª (=eu/nós) e 3ª (=ele (-a,-s)) pessoas gramaticais aparecem em todas as relações independente das funções sociais ou de poder que os personagens desempenham na trama.

1.1.1. Casos excluídos da regra geral

A terceira pessoa aparece no lugar da primeira pessoa (ele=eu) quando o personagem fala de si mesmo. A opção pela terceira é marca de modéstia. É uma forma de se colocar à distância quando se fala de si mesmo.

2. 2ª PESSOA GRAMATICAL

A segunda pessoa gramática (=TU e VÓS) tem uma significação maior neste contexto. Como tratamento direto da pessoa ou pessoas a quem se dirige a palavra, sua função está intimamente ligada às relações de superioridade, inferioridade, igualdade, [+intimidade], [+afetividade], insulto, modéstia e ordem. Assim, temos:

2.1. Uso do pronome TU

REGRA GERAL: Marca a relação de superior para inferior

2.1.1.. Casos excluídos da regra geral

a) O pronome TU é usado nas relações de [+intimidade] entre desiguais.
b) O pronome TU é usado nas relações de [+intimidade] entre iguais.
c) O pronome TU é usado nas relações de [+intimidade] entre namorados.
d) O pronome TU é usado nas relações de [+afetividade].
e) O pronome TU é usado nas relações de insulto.

2.2. Uso do pronome VÓS

REGRA GERAL : Marca a relação de inferior para superior

2.2.1. Casos excluídos da regra geral

a) O pronome VÓS é usado nas relações de modéstia.
b) O pronome VÓS é usado nas relações de ordem.
c) O pronome VÓS é usado quando há relação de igualdade social.
d) O pronome VÓS é usado quando há [-intimidade] nas relações de igualdade social.
e) O pronome VÓS é usado nas relações de [+intimidade] entre casados.
f) O pronome VÓS é usado quando há pluralização de pessoas - um personagem falando para vários.
g) O pronome VÓS é usado quando um personagem faz reverência a Deus ou entes religiosos.
h) O pronome VÓS é usado nos chamamentos.




Notas

1 Domingos, Tânia Regina E. As relações de tratamento entre os personagens do Auto de Vicente Anes Joeira. Rio de Janeiro: UFRJ, 1983. Trabalho monográfico.
2 Utilizamos as seguintes edições: 1. Autos portugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina, edición facsímil, con una introducción de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Madrid, 1922; 2. Teatro de Gil Vicente com uma apresentação e leitura de António José Saraiva, Lisboa, Portugalia, 1963; 3. Lixboa, A. edição crítica por Edwaldo Cafezeiro, Rio de janeiro, INL,1969. 4. Auto de Vicente Anes Joeira. Edição crítica preparada por Cleonice Berardinelli. Rio de janeiro, INL, 1963.
3 Saraiva. A J. História da Literatura Portuguesa, p. 205.
4 "Gil Vicente converteu em espetáculos falados aquelas alegorias mudas e embutiu nelas quadros de farsa" (Saraiva, A . J. História da Literatura Portuguesa, p. 204).
5 João de Barros (1971:319). Gramática da língua portuguesa. Por Maria Carvalhão Buesco. Lisboa.
6 Ibidem, ibidem

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